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domingo, 16 de agosto de 2009

Léa...ou Franciléa

A árvore devia morar ali há muitos anos. Toda encarquilhada pelo tempo e pelo peso das folhas grossas, como são as árvores do nordeste. Até o dia em que saltou para fora parte da raiz, tão arrochada estava, e deitou-se no chão. Junto, um pedaço do tronco despencou quase formando um ser...acolhedor.
Um banco surgiu dali. E era ali que ela estava sentada. Bem franzina, com uma blusinha branca de alças e um mini short jeans. Trazia os cabelos encaracolados amarrados por uma “xuxinha”. Os olhos meio morteiros. Não sei se pelo sono ou por questões de saúde. Podia ser fraqueza proveniente da má alimentação que teve durante os 21 anos que compõem sua vidinha frágil. Seu corpo, miúdo, parecia muito mais de um animalzinho acuado. A barriga, bem saliente, até exagerada pela sua magreza, deve ser resquício de gravidez muito jovem. É mãe de Henrique (3 anos) e Isaac (8 meses). Sua boca, com lábios grossos, sentia dificuldade para permanecer fechada porque os dentes protuberantes não permitiam. Usava uma sandália de dedo cor-de-rosa. Percebia-se vaidade. As unhas do pé estavam pintadas de rosa clarinho.
Tímida, tão tímida que nem me olhava. Falava “de banda”. Do seu olho esquerdo escorriam lágrimas. Foram várias. Ficavam ali, estacionadas, uma após outra, debaixo do olho, esperando serem sentidas até que fossem secadas, com as costas da mão, agressivamente, para não deixar resquícios. Daqui há pouco outra lágrima tola brotava. Sempre pelo olho esquerdo.
Intrigada com essas lágrimas, - que podiam ser ansiedade, tristeza, cansaço-, não contive a curiosidade e preocupação, perguntei-lhe:
- Por que estão escorrendo lágrimas pelo seu rosto?
- Respondeu-me com simplicidade, contrariando meus pré-julgamentos: - é o vento frio.
Apesar de ser meio-dia, estava frio. No mês de agosto, o inverno estava atento na cidade de Aracaju. Chovia muito e consequentemente a temperatura esfriava. Para os nordestinos esse frio sugere colocar casaco para aquecer, tão acostumados com o calor acima de 30 graus, grande parte do ano. Ela não usava casaco, apenas a blusinha branca de alças e um mini short.
Em alguns momentos, percebia segurança na sua voz. Na maioria das vezes acanhamento e inquietação, próprios de quem nunca trabalhou em casa de família.
Do outro lado da rua, o restaurante de comida natural, começava a atender os primeiros clientes e o cheiro vinha levemente pelo ar. Pensei se no estômago de Léa -como ela gosta de ser chamada - ou Franciléa, (seu verdadeiro nome), esse aroma trazia uma provocação. Será que tinha tomado café da manhã? Tinha um ar de pobreza, de necessidade, de carência, de fome, aquela alma frágil.
Confesso que fiquei comovida, querendo salvar essa família. O jeito adequado, a meu ver, era arranjar uma oportunidade de trabalho digno e a remuneração merecida. Sou contra dar esmolas e os flanelinhas que aparentam vigiar carros, como Ninho, marido de Léa.
Combinamos o dia de trabalho na minha casa. Seria um teste para ambas: eu por estar contratando uma pessoa totalmente inexperiente e ela por nunca ter feito trabalho doméstico fora de seus dois pequenos cômodos, na periferia.
Ninho veio trazê-la de bicicleta. A longa viagem foi muito cansativa para Léa. Seu bumbum, magrinho, não suportava a dureza do banco traseiro da bicicleta. Trocava de posição toda hora para evitar a dor. E o marido, pedalando com rapidez, vinha vergando seu corpo mulato, por baixo da camiseta vermelha. Suava em bicas.
Todo esse sacrifício foi uma demonstração de precisão de ganhar dinheiro para comprar mantimento ou quem sabe, uma futilidade que toda mulher gosta. O dinheiro seria dela, que ia trabalhar, como tinham combinado.
Léa lavou as roupas com capricho e quando terminou postou-se, silenciosamente - parecendo que nem respirava - atrás de mim, por incontáveis minutos. Trabalhando no computador, percebi sua presença insegura, quando tinha se passado um longo tempo.
Ufa! Até que enfim chegou a hora de ir embora. Cinco horas da tarde. Eu estava mais ansiosa do que ela. Sua presença já estava me incomodando, mesmo sem nenhum barulho.
- Tá na hora de ir, Leá, disse-lhe eu. Troque de roupa que vou lhe dar uma carona até a parada de ônibus. Vestiu a mesma bermudinha jeans e uma blusinha laranja. Tudo dela era pequeno, para cobrir o corpinho também minguado, menos a barriga, que sobrava fora da bermuda.
Lá na parada de ônibus estava Ninho, na bicicleta velha, com a mesma camisa vermelha, boné preto e sandália branca de dedo, esperando.
Fiquei ali,parada, vendo aquela criaturinha sentada na garupa, agora forrada com as roupas de trabalho para não sentir dor na região glútea, desaparecer no horizonte.
Ela não vai se esquecer desse dia. Eu também não a esquecerei. Ficou uma vontade de ajudar. Quem sabe um trabalho, com carteira assinada para o Ninho????

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